terça-feira, 10 de dezembro de 2013

NO AR

O Dia fez hoje uma entrada triunfal. Abri-lhe os braços e convidei-o a entrar, como se a casa fosse minha. Sorri-lhe. Ele sorriu de volta.
 Enchi o pulmão e percebi que meus pés não tocavam o chão. Flutuava como se sonhasse.  Esvaziei os pulmões para ver se descia... Nada. Mesmo sem ar, meu peito estava repleto e meus pés ainda não tocavam o chão. Sensação engraçada, boa. Resolvi não lutar mais contra ela.

Encarei novamente o dia e percebi que estava errada mais cedo. O dia não me sorria de volta. Ele era, antes, uma extensão de mim. Do que se passava aqui. Eu estava rindo, ainda que involuntariamente. Sem perceber, eu ria com todos os pedacinhos microscópicos do meu corpo. Meu peito repleto de alma. Coração num fluido compasso de uma canção sem ritmo, que cantava rimas de amor.


Tentei entender tudo. Busquei palavras (e ainda busco) para traduzir todo aquele sentimento. Não achei explicação racional para o infinito que começava e terminava no meu peito. Desisti de entender, ainda sem tocar os pés no chão. Na verdade, desconfio o que seja e só digo porque não tenho a pretensão de não soar pueril. Já que é exatamente assim que me senti hoje: boba, leve, inocente, esvoaçante, pueril. Hoje, me atrevi a pensar e ouso dizer que tenho a ligeira desconfiança de que o me suspendia era uma rajada contundente da mais pura e deslavada felicidade.  Uma lufada que passou por aqui, por um instante, e se foi. Ainda assim, meus pés continuam sem tocar o chão. 

Roberta S Saboya

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

CORTA PARA:

A arte de manipular o tempo, na ficção, sai diretamente das mãos dos roteiristas e editores. Nos filmes, vídeos, séries e novelas são eles quem tem o poder de “empurrar” a história para a frente. Na vida real, a arte de editar o tempo pertence única e exclusivamente a nós, os bêbados. 

Cena 1 – O Inicio de Lu
O início do sábado, para Lu, teve um gosto diferente. Foi o primeiro em que se sentia solteira de verdade. Só queria se divertir. No maior astral, começou a beber com as amigas. Até que...Jorge apareceu. O que ele estava fazendo num samba?? Surpresa. Cervejas. Raiva. Mais cervejas. Alegria. Mais cervejas. Início de depressão. “Oi, Você aceita uma cerveja?” - perguntou o cara mais gatinho e fofo do lugar. Que se dane o jorge! Sim! jorge, com letra minúscula mesmo. O sábado era dela. E das cervejas. Até que... “Você não acha que já chega de sambar, não?”- o fofo perguntou. Ela fez que sim com a cabeça. Ah, afinal, a vida era bela, a bebida era Stella (talvez a décima da noite) e ela não teve forças para resistir. Foi para a casa dele. Corta para:

Cena 1 – O Inicio de Edu
O início do sábado, para Edu, foi de praia, cerveja e futebol. Dali, praticamente emendou nos embalos de sábado à noite. Estava se sentindo gato. Mais do que o normal. Na balada, decidiu trocar o conteúdo do copo. Enquanto escolhia o alvo da noite, ia bebendo. Já alegre, ele percebeu que o território estava parecendo um campo minado, cheio de peguetes fixas e ex-peguetes. Queria novidade. Caçava. Vodka. Seduzia. Vodka. Fugia de umas. Mais vodka. Dava mole para outras. Mais vodka. Até que encontrou: Morena, nem alta, nem baixa, gostosa, na medida! Foi ao ataque. A morena aceitou a investida. Vodka. Tudo estava bem até que ele viu avançando pela lateral esquerda, uma mulher em fúria. Putz! Era Pri, a peguete fixa número 5, que ele esqueceu que tinha convidado pra festa. Rápido, Edu deu um gole abastado e propôs para a morena: “Vamos para outro lugar”? Ela fez que sim com a cabeça. Saíram da festa. Corta para:

Cena 2 – O meio de Lu
SOB O DOMÍNIO DO ÁLCOOL
Sem imagens nítidas – Corta para:
Cena 2 – O meio de Edu
SOB O DOMÍNIO DO ÁLCOOL
Sem imagens nítidas – Corta para:

Cena 3 – O Final de Lu
Lu acordou ao lado do gatinho fofo. Sorriu. Ele dormia pesado. O sol já tinha raiado há algum tempo e ela não queria ser daquelas mulheres inconvenientes que nunca saem da casa do cara. Então, Lu resolveu ir embora. Antes escreveu, no bloquinho perto do telefone um bilhete em agradecimento pela noite, com nome e telefone. Foi para a casa, sem que jorge com letra minúscula tivesse sequer cruzado o pensamento. Ao abrir a bolsa para pagar o taxi... Coisa estranha! A bolsa estava repleta de vômito. Imediatamente ela sentiu um frio na barriga. Tentou se lembrar, em vão, dos acontecimentos da noite. A única coisa que sabia é que tinha algo de podre no reino da Dinamarca... e na bolsa, é claro. Corta para:

Cena 3 – O Final de Edu
Edu acordou atravessado na cama, desorientado. Tentou reconhecer o local, em vão. Até que se virou e olhou para o teto. Espelho. Ok, estava no motel. Tentou se levantar. O corpo estava pesado, trêmulo. Olhou em volta, viu a morena dormindo numa espécie de divã, próximo à cama. Ficou feliz, tinha se dado bem, apesar de não lembrar. Satisfeito se esticou na cama. Seu pé tocou em outra pessoa. Ele se levantou, assustado. Era Pri, atravessada na cabeceira. Confuso, foi em busca das próprias roupas. Achou. Elas estavam num montinho misturadas às roupas das duas. Todas as peças de roupa estavam cobertas com uma substância negra. Ele se arriscou e cheirou. Vômito! Mas, preeeeto? “O que essas loucas aprontaram??”- pensou. Não sabia, e também não quis saber. Pagou uma conta absurda de motel e partiu feliz por ter pego duas ao mesmo tempo.
Fim


Como assim Fim??? Bom, para o texto não ficar sem explicação, a roteirista foi buscar a memória perdida. Lembrem-se! Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.
Cena 2 – O meio de Lu
(História recuperada graças ao gatinho fofo)
Lu estava aos beijos com o fofo no sofá. Tudo maravilhoso até ela encostar a cabeça no acolchoado e o mundo dela girar. Náuseas. Ela teve que ser rápida. Para não ficar muito chato e sujar a casa do rapaz, abriu a própria bolsa e fez o serviço ali. Depois sorriu para ele e tentou beijá-lo novamente. Ele recuou. Ela se sentiu enjoada de novo e repetiu o processo da bolsa. E fez assim muitas vezes, até ele conseguir que ela fosse vomitar no banheiro. A impressão de Lu em relação ao rapaz estava certa. Ele era um fofo e cuidou dela a noite toda, até ela apagar no lado direito da cama. A memória apagada na mente de Lu, ficou muito viva na cabeça do fofo. Ele chegou a pegar o telefone para ligar para ela algumas vezes. Mas, a imagem do vômito na bolsa o impediu.
Cena 2 – O meio de Edu
(História recuperada graças à Pri e à Morena gostosa)
No motel, Edu e a Morena beijaram-se loucamente até Edu interromper o processo para tentar respirar. Estava enjoado. Abriu o frigobar e tomou uma coca. Respirou e iniciou a pegação. A coca não tinha adiantado. Mega enjoado, ele foi salvo por uma batida na porta: “serviço de quarto”. Abriram. Era Pri, pronta para despejar a raiva. Mas, foi ele quem despejou nela, a La “Exorcista”, o líquido preto contido no seu estômago (culpa da coca). Em seguida, vomitou um jato potente na morena e correu para o banheiro. A situação ficou bem estranha. As mulheres vomitadas de preto ficaram se olhando. Sem ter mais o que fazer, conversaram enquanto ele botava os bofes para fora. Pri começou a contar as histórias de Edu. Interessada, a morena ouviu. As duas cuidaram dele, deram-lhe banho, lavaram as roupas (todas), colocaram-no na cama. Não satisfeito, ele vomitou novamente em cima das roupas já lavadas. Elas riram, abriram uma garrafa de champanhe e ficaram amigas.
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Sim, essa arte de manipular o tempo pode custar bem caro, eu bem sei. E não digo caro só porque é caro beber nas festas. Mas porque nós, os bêbados, de vez em quando, perdemos dinheiro, carteira, documentos, celular, dignidade...Ah, a dignidade! Volta e meia deixamos a coitada perdida, sem pai nem mãe, espicaçada, caída no chão e com os dentes quebrados...Eis que a ressaca moral chega e faz a gente querer morrer. A gente se promete que nunca mais vai beber de novo.  Corta Para:


Cena 1 – Festa de sábado/ Inicio do nova bebedeira 


Roberta S. Saboya

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Ensaio Sobre a Mudez


Ilustração: André Glasner

Tentei falar... Mais uma vez... E outra... Nada saiu. Nenhum som. Nem um rosnar. Nem guincho. Nada. A princípio faltou-me o ar e a visão ficou turva. Fechei os olhos e tentei respirar melhor. Ao abri-los de novo vi que a caixa do banco, uma senhora gordinha e avermelhada, movia seus lábios me encarando assustada. Imaginei-me surdo também, mas não. Ela começou a se contorcer levando a mão fofa e vermelha ao pescoço em um desespero maior que o meu. Começamos uma troca de gestos e bocas abertas e aflitas. Ela apontou com o dedo almôndega e olhei ao redor. Senti-me um personagem de Saramago. As pessoas atrás de mim pareciam galinhas engasgadas, esticando os pescoços e vagando desnorteadas e mudas pelo hall do banco. Uma menina de chiquinha corria sem rumo com os braços pra cima e a boca arreganhada. Deu com a cara no vidro. Ouviu-se o barulho da trombada, mas o choro mudo acabou por chamar mais a atenção e todos olharam. Uma mulher, que deduzi ser a mãe da criança, foi socorrê-la. A mulher sentou-se com a filha no colo e pôs- se a chorar.  A partir daí, saí de Saramago e fui pra Chaplin. O jogo gestual e fisionômico era patético, pareceu-me exagerado pra compensar a falta do som. Não estivesse mudo gargalharia com facilidade.
Aos poucos a cena ficou menos caricata e até as lágrimas escorriam mais morosas. Passei da vontade de rir, para a vontade de chorar no mesmo repente que me surgiu a mudez. Chaplin saiu de cena e deu lugar a Michelangelo. Uma Pietá em carne e osso esquentou meus olhos e não contive o suor. Ninguém conteve. Não sabia se chorávamos pela cena, pela peculiaridade das nossas situações ou mesmo pela peculiaridade da vida. “Calada a boca resta o peito”... a cuca... e os olhos. Encerrei minha silenciosa experiência em Chico Buarque. Um senhor entrou no banco falando alto ao telefone. Senti que minha voz voltou. Todos se precipitaram apressados de volta a fila. A mãe, outrora Pietá, levantou-se ligeira e correu arrastando a menina pelo braço, que a essa altura já não chorava mais.
- Ei! Esse lugar era meu.
- Eu estava à frente desse senhor, não estava?
- Não sei de nada não reparo essas coisas.
- Não vai bancar o espertalhão pra cima de mim não, malandro, pode ir pra trás.
- Malandro é o cacete! Acha que só porque é mulher eu vou aceitar calado? Vem me tirar daqui!
A confusão se generalizou, alguns reclamavam concordando com um, outros com outro. A menina voltou a chorar, mas dessa vez ninguém ouviu. Eu, como já estava no guichê, paguei minhas contas e fui embora.

 Rick Sadoco

 

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Entre o ir e o ficar (O meio do caminho)

O dia era de samba.
Mas, o fato de estarem ali por acaso,
É apenas um detalhe raso
na história do encontro daqueles dois.
Atraíram-se, entre uma cerveja e outra,
como ele propôs.
Colaram-se, despretensiosamente, sem pensar no depois.

Assim seguiram.
Juntos, divagaram pela estrada, no meio, macios.
Ela, meio copo cheio; ele, meio copo vazio.
Pisavam leve o meio do caminho,
Evitando os imaginários espinhos.

Falavam de Tudo: de Bukowski e tanto mais.
Discutiam teorias e riam das diferenças abissais,
Criticando mutuamente seus mais íntimos ideais.

Assim seguiam.
Divagando pela estrada, no meio, sadios.
Ele, meio copo cheio; ela, meio copo vazio.

Ainda leves, whatsappeavam carícias,
Comentavam as notícias,
Enquanto, os lençóis cobriam as delícias
De estar sem pertencer.

Assim seguiam.
Mornos, divagando pela estrada, no meio, sem sentir frio.
Ela, meio copo cheio; ele, meio copo vazio.

Inteligentes, falavam sobre tudo.
Ainda que houvesse silêncio no que era urgente.
E foi num dia de sol, quase que de repente,
Que a leveza pesou o meio do caminho, impunemente.
E não falaram mais nada.
Contabilizaram, silenciosos, Dostoievskis não lidos,
Vinhos não bebidos, Cubas não visitadas.

Assim partiram.
Protagonistas, pela estrada, no meio.
Não se despediram.
Agora, sem o mútuo convívio.  
Ela, meio copo rancor, meio copo alívio.
Ele, meio copo dor, meio copo novo (meio) amor.

Assim seguiram.
Protagonistas, pela estrada, no meio. No meio do caminho.
E agora sim, sozinhos,
Viram com mais clareza que o meio daquela estrada...
Ah, o meio.
rima com anseio, receio, freio!
Como era inseguro e feio, acomodar-se justo ali, naquele caminho. O caminho do meio.  

Roberta S. Saboya

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

De Dentro



         Acordou pra dentro. Seus sentidos estavam confusos. Um clarão o impedia a visão e os sons ainda eram um zunido monocórdico. Aos poucos, olhos e ouvidos de dentro se adaptaram. Foi então que ele se constrangeu. Estava nu, no centro de uma praça, rodeado de pessoas que riam alto e o apontavam. Podia distinguir alguns rostos conhecidos na multidão, mas não hesitou em correr. Percebeu que corria ao lado de uma mulher loira que lhe sorria amável e então essa loira era sua avó, rodeada por lãs e agulhas de tricô. Um cachecol verde se amontoava pela sala e as mãos enrugadas da avó não paravam de trabalhar. -“É pra você!” Ele se enrolou no cachecol dos pés ao pescoço e não conseguia mais se mover. Sentiu o chão trincar e se abrir. Caiu em um lago onde um peixe-boi penteava o rabo de uma égua branca de olhos azuis. Mergulhou fundo e não mais conseguia subir. Debateu-se sem fôlego e na agonia viu que o cachecol verde estava enrolado no pescoço da égua, pegou-o e colocou no rosto. Pela trama do tecido viu um exército em posição. Todas as armas apontadas pra ele. Os soldados se levantaram e marcharam e ele marchou junto. Ao seu lado um soldado, que tinha a sua cara, perdeu o compasso. Ele o ajudou a entrar no ritmo e dançaram Ravel sobre as águas do lago. O soldado era sua mulher em um lindo vestido vermelho. Rodopiavam enquanto um cachorro latia e rosnava em frente a casa. Com medo parou e recuou. O Rottweiler e mais seis Chihuahuas partiram em sua direção. O exército voltou à posição e lhe apontou as armas. O cachecol enrolou em suas pernas e braços.  Ele olhou pra trás, viu apenas um precipício. Sua avó e sua mulher o empurraram. Um grito de pavor e então ele dormiu pra fora. –Ufa!


Rick Sadoco

quinta-feira, 18 de julho de 2013

SAUDADE



Tem dias em que ela acorda, toma café, almoça e janta com você. Você pode tentar despistá-la com trabalho, amigos, amores e boas taças de vinho. Mas, na hora de dormir, você percebe que ela está lá. E te esmaga tão completamente que você tem certeza que ela não se foi nem por um momento do dia. Inocência sua ter pensado que sim. Sem conseguir dormir, você se entrega ao sonho e, acordado, brinca de lembrar. Idealiza o tempo em que tudo parecia estar bem. Ou se fingia estar. Pensa na docilidade do olá. O abraço, ah! O braço forte da camuflada fragilidade. Deseja ter sido Fabiana, Carol, Maria...apenas para ser qualquer pessoa com quem ele tivesse tido a coragem de olhar nos olhos e ser ele.  De pernas e mãos atadas, você se entrega ao silêncio, mas não sem antes se ajoelhar. Ali, lado a lado, vocês oram, incrédulos, pedindo um futuro de boas lembranças.  Até que, esgotado, você se entrega à noite. E ainda, de mãos dadas com a saudade, você atravessa universos  levando consigo apenas a pessoa em quem gostaria de tocar, mas que seus braços, num momento, não tem direito de alcançar. 


Roberta Saboya

quinta-feira, 20 de junho de 2013

O DESPERTAR

Tudo estava calmo. Ela era um coração estável, aposentado de paixões, dentro de um país que se sabia alegre, apesar de. Ela, assim como o país, acostumara-se a reverter a mais triste dor em riso, em questão de tempos ou de copos de cerveja. Em legítima defesa, aprenderam a gargalhar de si. Faziam piada dos próprios defeitos e desvantagens, agarravam-se às delícias de ser, sabiamente ignorando todas possíveis armadilhas de se tornarem questionadores de seu próprio mundo...Assim, imersos na calmaria dos inocentes, viveram felizes por algum tempo. Num belo dia, um estrangeiro que passava por ali,  ergueu diante deles um espelho. Espantaram-se ao perceber que eram maiores do que imaginavam, tanto o coração dela, quanto o país. Não souberam ao certo durante quanto tempo espezinharam, de chuteiras, a própria auto-estima ou se deixaram inebriar pela compreensão maniqueísta de si mesmos. Ainda em berço esplêndido, perceberam que a cegueira seletiva não caberia mais ali. Quase imediatamente, o desejo abafado chutou a inércia, que atingiu em ondas as ex-margens plácidas. Então, levantaram-se. Tiraram das costas o peso, antes simpático, do  “Apesar de” e partiram “em busca de”... Ela, coração instável, banhado de sonho intenso e raio vívido. Ele, gigante pela própria natureza, mais forte e impávido. Ainda de chuteiras (pois assim seriam sempre) caminharam, braços erguidos, em direção a um novo futuro. Estava nublado. Mas, como milagre, o sol da liberdade brilhou no céu da pátria naquele instante. 

Roberta S Saboya

sexta-feira, 14 de junho de 2013

A FUGA



          Saiu sem que ninguém percebesse. Juntou suas coisas, que não eram muitas, na mala azul surrada de rodas quebradas. Capengas, ele e a mala precipitaram-se pelas, também capengas, ruas de paralelepípedos. Encoberto pela não luminosidade da noite sem lua, chegou à estação sem ser notado. Pegou o primeiro trem rumo à qualquer lugar. Decidiu que desceria na quinta parada. Gostava do número 5. Pela janela observou a noite parir o sol, esvaziando-se em dia. As árvores próximas corriam rápidas em direção ao passado, acompanhadas pelos passos lentos das montanhas distantes. Aos poucos, fechou os olhos e adormeceu. Despertou, com o apito do trem, já na quinta estação. Pegou a mala e desceu. Não sabia o que fazer e nem pra onde ir. Andou a esmo. Desconheceu as ruas, as casas e as pessoas. Desconheceu as paisagens, os cheiros e os sons. Desconheceu-se... em seus pensamentos, em suas emoções e, sobretudo, em sua coragem. Desconhecia o porvir. Deteve-se diante do jardim de uma simpática pousada. Entrou. Não lhe preocupou se a vida seria feliz ou não. Seria diferente e isso era tudo o que ele queria.

 Rick Sadoco

segunda-feira, 3 de junho de 2013

FÉRIAS

Hoje, quando tentei levantar,
O dia me convidou a ficar.
Rodei para lá, fiz força para cá.
Resisti.
Mas o corpo teimou em pesar.

Depois de longos cinco minutos,
Como a luta era inglória,
Passei a participar da minha própria história,
Na voz passiva. Caí!
No abismo sem gravidade,
Esqueci da saudade.

Dei chance para o meu tênis descansar,
E nem os chinelos, eu quis calçar.
Abri a porta da rua para o passado ir lá fora brincar,
Aposentei os sonhos,
Dei folga para o futuro,
Deixei a ansiedade respirar calma
E com gotinhas de chocolate preenchi
Os vazios da alma.
Tirei férias de mim.
Hoje, nem o barulho da chuva,
Nem o convite ao amor
Vão me tirar do adultério
De um compromisso sério
Com o quentinho do meu cobertor.

Roberta Saboya


terça-feira, 14 de maio de 2013

ELA ALTEROU SEU STATUS PARA...


  Mudara seu status há poucos dias. Apesar de o seu corpo estar se acostumando, a alma ainda insistia em estranhar a liberdade. O coração oscilava entre os pulos de ansiedade quase pueril e o peso da saudade. Tinha dias em que a dona desse corpo-alma-coração passava horas tentando lembrar porque ela tinha virado a vida dela mesma de pernas para o ar e mudado aquele status. Os dias se passavam e numa hora qualquer, ela se pegou no flagra em meio ao ato de não pensar. E num estalar de dedos, ela era. Do verbo ser, sem pensamento agregado!

   Acho que foi neste dia que reparou o colega de turma. Uma pessoa que sempre esteve ali, mas não significava nada antes. Achou-o mais que bonito: interessante. Olhou para ele. Ele lhe sorriu com “cara de sim”, ela devolveu o sorriso com “cara de talvez”. Sim, ele era casado. Apesar disso, ou talvez alimentados por isso, trocaram mensagens de facebook. Na mesma noite, saiu com as amigas e conheceu o Fofo, possível candidato a amor da vida. Ele sorriu para ela com convincente cara “de vamos agora, para sempre”?  Ela retribuiu com cara de “com certeza, mas espera um pouco, pois sou boa moça e não posso ir rápido demais”. Trocaram telefones. No dia seguinte, reapareceu do passado, um amor esquecido. Ele sorriu com cara de “ainda dá”? Ela retribuiu com um “talvez, muito possivelmente que sim”. Combinaram de sair na semana seguinte.

   Na semana seguinte, nenhuma mensagem de facebook, nenhum telefonema, nenhuma concretização de encontro. Sentiu a dor da saudade de quem abriu mão de ser. Era um dos dias em que havia se esquecido o motivo da sua mudança de status. Então, a solidão sorriu com cara de “posso entrar?”, ela retribuiu com “fique a vontade, mas vou ali e já volto”. E foi para um despretensioso almoço. Lá, encontrou uma possibilidade. Ele sorriu com “hummm”, ela retribuiu com “ahhhh”. Mas, talvez pela bebida, ou pela amizade, ou pelas coisas que passam na cabeça do outro e a gente nunca tem como saber... nada se concretizou. Hummms e ahhhhhs ficaram no ar, no olhar, na expectativa de um futuro que talvez não chegasse.  A solidão ainda espreitava o apartamento, quando ela voltou. Não levou muito tempo para finalmente seu coração conseguir se lembrar o motivo que fez seu corpo mudar tudo. Sentiu na alma o gosto de segunda-feira dos últimos tempos de namoro. Não importava o dia da semana que fosse, no seu antigo status, ela estava presa a uma eterna segunda-feira. Isto posto, ela simplesmente deixou aquela sensação de sexta-feira invadir seu corpo-alma-coração. A esta altura, a solidão já tinha rumado para a casa da vizinha de baixo. 

Roberta Saboya

terça-feira, 7 de maio de 2013

O GRITO




        A Senhora e sua cadela, Nala,  moravam no prédio em frente ao meu, mas mais pareciam morar na rua. A qualquer hora do dia, em qualquer dia da semana estavam pela calçada. A cachorra explorando a rua e a Senhora vigiando atrás. De vez em quando (pelo menos umas cinco ou seis vezes ao dia) a vizinha canina se aventurava por locais mais distantes. E esses momentos me  chamaram mais a atenção.
        - Naaaaaala! Naaaaala!
        A Senhora gritava com uma voz muito alta e ao mesmo tempo rouca e estridente. A princípio,  achei apenas curioso e engraçado. Depois, passou a ser de uma irritação inominável. Tinha ímpetos de gritar um cala a boca pela janela. Nunca o fiz. Sou polido no trato social, o que ja até me rendeu uma úlcera, mas isso é outro assunto.  O caso aqui é que o berreiro me transtornava sobremaneira.  
       No último domingo, assistia a um filme confortavelmente no sofá de minha sala, quando Nala resolveu fucinhar na rua debaixo, dando início ao que mais parecia um concurso de calouros desses em que as pessoas se esganiçam em altos e retumbantes brados à procura do apoio do público. Fui até a varanda no intuito de tomar alguma providência diante de tamanha poluição sonora. Detive-me no parapeito.  A cachorrinha voltava faceira e rabalmente abanante. A Senhora a recebia materna e labialmente convexa. E eu assisti a tudo, ocularmente inundado, e vocalmente entupido. Pude ouvir além dos gritos.
       Saí da varanda. Limpei minhas lágrimas. A irritação havia passado. Desci  até a rua.
       - Boa tarde. Dia lindo pra tomar um ar na rua, né?
       - Ah, meu filho. Eu adoro. Sempre que posso to aqui com a Nala.
       A conversa ainda durou até o pôr do Sol. Despedi-me e voltei ao meu filme. Aquela noite não houve mais gritos, apesar de Nala ter dado a volta no quarteirão umas quatro vezes. Sozinha.



Rick Sadoco

terça-feira, 23 de abril de 2013

VIDA FÁCIL



Podiam dizer que era fácil a vida dela. Ela podia concordar em parte. A vida de Sônia começava com o sol para lá de alto. Levantava-se ainda Cleonice, entre lençóis puídos e gosto de ressaca. Antes do café, o cigarro. Antes dos pensamentos, a televisão. Tomava café da manhã, à tarde, sempre assistindo a filmes antigos. Era a hora do seu prazer. Quando o letreiro anunciava o Fim, era o começo. Cleonice se pintava com maquiagem barata, perfumava-se com o presente doce dado por alguém que nem lembrava mais, vestia poucas roupas.  Não se olhava no espelho. Mirava-se no cartaz. O velho pôster da Sonia Braga a fazia lembrar porque havia fugido de um pobre cafundó do Brasil para vir para o Rio de Janeiro. Quando via sua imagem no cartaz não lembrava que não havia realizado nada do que planejara. Não lembrava que seu tempo havia passado. Não lembrava que estava só num cafundozinho em Copacabana. Não lembrava quantas vezes teria que abrir as pernas aquela noite para ter o que comer no dia seguinte. Não lembrava do cheiro de cerveja azeda e seca que sentia pelas calçadas toda vez que voltava para casa. Não lembrava o quão difícil era ser Cleonice. Olhava Sônia e seus dentes brancos de manhã calma. Sabia, então, que aquela noite podia ser que fosse o dia em que encontraria a sua manhã calma. Assim partia.  E era fácil! Era muito fácil ser Sônia. 

Roberta Saboya

quarta-feira, 10 de abril de 2013

FIM DE CASO



-Muuuuuu!
Entristeceu-se a vaca.
-Miauuuuu!
Indignou-se o gato.
-Auuuuuuu!
Lamentou o cão.
-Mu!
-Miau!
-Au!
Opinou a bicharada.
-Béeeeee! Béeeeeee!
Choraram as cabras.
Mesmo assim,  acabrou-se!

 Rick Sadoco

quarta-feira, 20 de março de 2013

UM INVERNO QUENTE


   
As chances de eles se encontrarem eram remotas, diriam os Otimistas. Ínfimas, diriam os Realistas. Possíveis, afirmava a Probabilidade, silenciando temporariamente Otimistas, Realistas e Pessimistas (já calados dede o início).   Ela era de um país, ele era de outro. Um dia, por diferentes razões, os dois estavam num mesmo lugar. Um terceiro país, muito distante dos seus de origem. A primeira vez que passaram um pelo outro, não se viram. O lugar era estreito e estava cheio. Fazia frio. Os dois andavam o mais rápido possível, entre especiarias e chás. Mantinham os olhos baixos. Talvez pela falta de expectativa. Talvez para evitar os olhos dos comerciantes inconvenientes.   Chegaram a quase se encostar. Mas, se perderam muito antes de saberem que poderiam se achar. Escaparam- se outras tantas vezes, para delírio dos Pessimistas.  

   No dia mais frio daquele inverno, entre “al slaams” e “shukrans” , esbarraram um olhar no outro. Entre artigos de couro e perfume de jasmim, identificaram algo em comum entre si. Sorriram, com todas as partes do corpo, denunciando a própria latinidade.  Delírio dos Otimistas, reação moderada dos Pessimistas e incredulidade dos Realistas. Caminharam juntos, a partir de então. Conversaram sobre todos os assuntos. Ela não falava uma palavra de espanhol, e ele não falava nada de português. E se entendiam perfeitamente. Restava a eles pouco tempo naquele país. Aproveitaram. Entre tapetes e medinas, conheceram níveis de intimidade que nunca haviam vivido antes. Aqueceram-se.  Entre tâmaras e harissas, experimentaram gostos que nunca tinham testado antes. Embolaram-se. Entre futas e lençóis, misturaram tango com o samba. 
   
   Quando chegou o momento, eles voltaram para os seus países. Embora, o verão os fizesse suar, eles ainda exalavam o frescor daquele inverno. Pouco a pouco foram se mesclando à velha realidade: Antigo trabalho, antigos amores...calor! O gosto doce do perfume de jasmin ficou preso em algum lugar entre a memória e o delírio. A cada dia, as chances de existir um tempo como o que passou, ficavam mais remotas. Todo ano, os Otimistas aguardavam esperançosos; os Pessimistas, incrédulos; os Realistas, ansiosos pela possibilidade de um futuro inverno quente. Insistiam no mesmo pensamento, pois ainda que ínfima, havia uma probabilidade. 

Roberta Saboya