segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Ensaio Sobre a Mudez


Ilustração: André Glasner

Tentei falar... Mais uma vez... E outra... Nada saiu. Nenhum som. Nem um rosnar. Nem guincho. Nada. A princípio faltou-me o ar e a visão ficou turva. Fechei os olhos e tentei respirar melhor. Ao abri-los de novo vi que a caixa do banco, uma senhora gordinha e avermelhada, movia seus lábios me encarando assustada. Imaginei-me surdo também, mas não. Ela começou a se contorcer levando a mão fofa e vermelha ao pescoço em um desespero maior que o meu. Começamos uma troca de gestos e bocas abertas e aflitas. Ela apontou com o dedo almôndega e olhei ao redor. Senti-me um personagem de Saramago. As pessoas atrás de mim pareciam galinhas engasgadas, esticando os pescoços e vagando desnorteadas e mudas pelo hall do banco. Uma menina de chiquinha corria sem rumo com os braços pra cima e a boca arreganhada. Deu com a cara no vidro. Ouviu-se o barulho da trombada, mas o choro mudo acabou por chamar mais a atenção e todos olharam. Uma mulher, que deduzi ser a mãe da criança, foi socorrê-la. A mulher sentou-se com a filha no colo e pôs- se a chorar.  A partir daí, saí de Saramago e fui pra Chaplin. O jogo gestual e fisionômico era patético, pareceu-me exagerado pra compensar a falta do som. Não estivesse mudo gargalharia com facilidade.
Aos poucos a cena ficou menos caricata e até as lágrimas escorriam mais morosas. Passei da vontade de rir, para a vontade de chorar no mesmo repente que me surgiu a mudez. Chaplin saiu de cena e deu lugar a Michelangelo. Uma Pietá em carne e osso esquentou meus olhos e não contive o suor. Ninguém conteve. Não sabia se chorávamos pela cena, pela peculiaridade das nossas situações ou mesmo pela peculiaridade da vida. “Calada a boca resta o peito”... a cuca... e os olhos. Encerrei minha silenciosa experiência em Chico Buarque. Um senhor entrou no banco falando alto ao telefone. Senti que minha voz voltou. Todos se precipitaram apressados de volta a fila. A mãe, outrora Pietá, levantou-se ligeira e correu arrastando a menina pelo braço, que a essa altura já não chorava mais.
- Ei! Esse lugar era meu.
- Eu estava à frente desse senhor, não estava?
- Não sei de nada não reparo essas coisas.
- Não vai bancar o espertalhão pra cima de mim não, malandro, pode ir pra trás.
- Malandro é o cacete! Acha que só porque é mulher eu vou aceitar calado? Vem me tirar daqui!
A confusão se generalizou, alguns reclamavam concordando com um, outros com outro. A menina voltou a chorar, mas dessa vez ninguém ouviu. Eu, como já estava no guichê, paguei minhas contas e fui embora.

 Rick Sadoco