quarta-feira, 29 de agosto de 2012

CONFISSÃO


Ele entra na sala, em direção à máquina de xerox, como fazia diariamente.

Seria hoje, pensou ela! Agora. Nem um minuto a mais ou a menos. Hoje, falaria tudo. Assim que ele se aproximasse.
Ele remexe os papéis, como era de costume.

Ela prende a respiração involuntariamente. Sabia que ele se viraria em 5, 4.... Ela fecha os olhos 3, 2...e abre a boca, pronta pra falar 1...

Ele não se vira. Algo na planilha do mural o detém.

Zonza, ela se da conta que está prestes a assassinar sua paixão platônica. Morreria hoje: Desapareceria ou viraria outro tipo de paixão. Diante da grandiosidade do fato, percebeu que não conseguiria escapar da sua Montanha Russa íntima.

Ele volta a se virar em direção a ela.

Tonteira, músculos de gelatina, redução drástica da idade emocional, êxtase; eram familiares efeitos colaterais que a simples presença dele causava ao corpo dela.
A caneta dele cai. Ele se abaixa.

Logo, os olhares se cruzariam. Subida da montanha russa. Na mente dela, pensamentos saltavam como pop-ups: Talvez as palavras sejam agressivas ou estúpidas demais. “Ok!” Não diria as palavras, então. Falaria tudo hoje sim, apenas com o olhar. E diria tudo num beijo ávido... “Patético!” Disse o alarme da autocensura. Decidiu-se: “Mímica!” Em gestos simples e não dramáticos, ela o convidaria para um chope e, bêbada, vomitaria em letrinhas o desejo que sufocara durante meses.

Ele se levanta. Lindo. Sorriso no rosto e caneta na mão.
Ela desiste. Não conseguiria enfrentar tanta beleza. Não hoje. Montanha Russa... Amanhã, falaria tudo. Nem um minuto a mais ou a menos.

Ele sai.
Sem que percebesse, as duas sílabas que a faziam suspirar escaparam da boca: “Chico!”. Em silêncio, ela torce para ele não ter ouvido sua impulsividade.

Ele ouviu. Volta à sala. Os olhares se cruzam. À beira do abismo da Montanha Russa, ela sorri. Talvez, diga tudo hoje. Talvez, não precise.  

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

O Encontro


João e Lúcia se conheceram pela internet. Paixão à primeira teclada. Lúcia não era nada que fosse um padrão de beleza. João a mesma coisa. Trocaram fotos. Sentiram-se seguros, ninguém omitia quem era. Falaram-se pela webcam. Fizeram sexo virtual.  Após dois meses de relação cibernética combinaram o encontro. Estavam ansiosos. Marcaram local público, uma praça. Já se viram de longe e constataram que nada estava diferente do previsto. Abraçaram-se e começaram a conversar. João sentiu um cheiro em Lúcia, algo que não imaginava. Lúcia limpou alguns perdigotos que João lhe lançava ao falar. Beijaram-se, Lúcia mais calma e romântica, João mais afoito e fogoso. Foram a um motel. Nus, um diante do outro, tudo continuava semelhante ao já visto. Mas o cheiro de Lúcia ainda impressionava João. E os perdigotos de João ainda impressionavam Lúcia. Transaram. João gostou, apesar de sentir-se desconfortável com o odor de Lúcia. Lúcia gostou, apesar de achar que João poderia falar menos durante o sexo para, assim, cuspir-lhe menos. No banho tudo foi perfeito, João não sentia o cheiro de Lúcia e Lúcia não sentia os perdigotos de João. Secaram-se. Vestiram-se. Despediram-se. Não se encotraram mais. Uma ou duas palavras pelo chat. Preferiram ficar sós a passar a vida embaixo do chuveiro.

Rick Sadoco

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Pour Elise


Quando acordou ja estava morta. Tentou se lembrar de alguma coisa. Mas, nada, nem mesmo de seu nome. Só sabia que estava ali, acordada e morta! Andou pelo quarto do qual não se lembrava. Olhou pela janela a paisagem, aparentemente nunca vista. O tapete estranho com estampas florais estava amontoado em um canto. Acima da cama, um quadro com um barco à vela lutando contra ondas gigantes. Os porta-retratos exibiam sorrisos desconhecidos. Olhou sorriso por sorriso, algum deles deveria ser o seu. Rondou pelo quarto à procura de um espelho. Encontrou-o na tampa de um porta-jóias que tocava Pour Elise quando aberto. Fitou-se ao som da melodia. Seus olhos negros, seu nariz aquilino, sua boca fina, seus cabelos encanecidos, seus dentes pequenos, suas rugas profundas, nada ali lhe era familiar. Apenas uma coisa, a música. Lembrava-se da canção e dos caminhões de gás que a tocavam pelas ruas. Que ruas? Tentou sair do quarto, a porta estava trancada. Voltou à janela, parecia alto demais pra pular. Estava morta, que diferença faria? Subiu no parapeito, levando consigo o porta jóias. Não sentia medo, não sentia nada. Pulou. Ao tocar o chão, não tentou se levantar. Ficou ali, deitada. Alguns gritos e algo parecido com uma sirene misturaram-se ao som familiar do porta-jóias que ainda tocava. Embalou-se e dormiu, morta.

Rick Sadoco