quarta-feira, 1 de outubro de 2014

AUTORRETRATO

Rio de Janeiro, Domingo (s), 2014

Era um domingo daqueles. De azul límpido de paraíso, sem linha visível a romper o horizonte verde do mar. O sol quebrava o infinito verdazul, soberano, quase sorrindo. A sorrir mesmo estavam os donos das cangas, pranchas e bolas que se embolavam na areia. Duas ruas longe do paraíso, a paisagem era outra: o sol parecia brincar de esconde-esconde com quem transitava, não se podia vislumbrar nem resquício de horizonte, mares de gentes se moviam. Não se olhavam, ou não se viam. Se espiavam, apenas de soslaio, quando desconfiavam umas das outras. O som do radinho enfurecido era abafado pela broca da obra em frente. Obra quase permanente, monumento que se fazia presente naquela paisagem há mais de um ano. A guerra decibética era vencida só e tão somente pelas sirenes das polícias e ambulâncias ambulantes que tentavam, em vão, aplacar alguns gritos de socorro. De passagem, olhei a paisagem: Selvas de prédios, asfaltos, gentes prontas a atacar ou a se defender das outras gentes. Um quadro feio, sem respeito pela cidade - que já fora tão bela- sem respeito pelo sol que devia estar brilhando não muito longe dali, sem respeito pela felicidade de alguém que estava em algum lugar que não aquele. Já na segurança do claustro, buscava apagar a imagem da cabeça. Não queria mais o mar de cinza invadindo o meu HD pessoal. Quis apagar, remover, deletar. Fechei mais uma vez os olhos para expurgar de vez o domingo. Foi então que notei. Olhei para o quadro de novo e ali estava seu Zé, sereno, no meio da calçada. Ele regava o tronco de árvore que eu já tinha esquecido que ali habitava. Seu Zé não se abalava com o radinho enfurecido, com as sirenes, ou com a broca. Alheio àquelas selvas de gentes enfurecidas e amedrontadas, ele regava o tronco. Nem me lembro de ter achado estranho, porque não o enxerguei na paisagem. E só agora lembro que quando passei perto, também amedrontada e enfurecida, vi a orquídea que ele cultivava com cuidado no tronco da amendoeira. Acho que ele me sorriu. Talvez, naquele momento, o sol tenha dado uma espiadinha por detrás dos prédios e iluminado o quadro com um feixe de esperança. Talvez... Quem sabe?

Roberta S Saboya

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